sábado, 7 de fevereiro de 2009

A Sinceridade

A Sinceridade I. Montesquieu em O Elogio da Sinceridade, defende a sinceridade como local de excelência da força da liberdade e de verdade: a possibilidade de se poder fazer aquilo por que se opta sem obstáculos exteriores, Libertas coacione. A liberdade da razão, a do «sábio» (Espinoza) e a determinação do ser, […] pois o mesmo é para pensar e para ser […], (Parménides). Nesta acção de liberdade do ser, a sinceridade é uma prática natural, espontânea e necessária à felicidade. A sinceridade não se confunde com ingenuidade. II. A sinceridade é um prado que só floresce com a presença da liberdade, quando o indivíduo se sente livre de a praticar. Aristóteles (Ética a Nicómaco), defende que o mérito ou demérito não podem ser atribuídos senão aos actos que se é livre ou não de praticar. A sinceridade é uma acção de excelência ética. […] as pessoas sinceras são outro caso de pessoas que estando no meio termo (i.e., entre a falsa modéstia e a jactância), merecem louvor, e ambas as espécies de pessoas insinceras são censuráveis, […] por isso as pessoas de bem, […] são sinceras tanto nas palavras como na sua conduta porque este é o seu carácter […]. Nos estóicos a liberdade humana é uma adesão espontânea à necessidade natural de […] levar a vida em total sintonia com o logos […] Em Santo Agostinho, a liberdade é o poder do homem de produzir os seus próprios actos num sentido positivo ou negativo; já para Locke, é o poder de agir ou impedir-se de agir; e para Leibniz, é toda a espontaneidade racional. Para Kant, é autonomia, a qualidade de um acto que se faz sem qualquer influência estranha; é a liberdade do eu-númeno como exigência da razão prática. Porém, Kant não vê a razão capaz de nos indicar uma sinceridade liberta de influências estranhas. […] quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verdadeiro contentamento, […] pois […] a natureza teria evitado que a razão caísse no uso prático, […] se a tivesse […] com sábia prudência confiado […] simplesmente ao instinto […] O instinto é a percepção espontânea e imediata, por exemplo, do perigo, faculdade comum a todos os animais e presente mesmo nos actos racionais do homem. Quando Montesquieu nos apresenta a sinceridade como anfitriã da liberdade, refere-se a essa faculdade espontânea, instantânea e porque não intuitiva, que em nós existe de alertar-nos a aceitar ou recusar qualquer coisa. Seguindo o seu raciocínio é a sinceridade que aguarda pela liberdade para se manifestar. Mas não ocorre na inversa. A virtude pregnante da sinceridade é chamada a colorir o tom da porção de liberdade que recebe. Sendo a liberdade de dizer ou fazer aquilo que se quer uma acção contingente, em que a sinceridade é predicado, cabe à-vontade decidir a tonalidade da expressão no ajustamento à realidade exterior. Deste modo, a liberdade pode colorir-se de sinceridade nos tons mais fortes ou mais ténues, ser total ou nenhuma. São, portanto, diferentes: a liberdade é obreira do grau de sinceridade que a vontade decide exprimir. A sinceridade é o acto espontâneo (instintivo) da harmonia entre o ser e o pensar no nosso entendimento. Como todo o ser humano possui por igual essa espontaneidade da sinceridade, todos sabem o que é ser justo. A liberdade de pensar todas as possibilidades de qualquer coisa sobre que nos debrucemos, corresponde a iguais possibilidades de nos coibir da vontade de praticar a livre sinceridade. Em Kant encontramos duas qualidades fundamentais de liberdade, já referenciadas pela primeira vez na modernidade pelo próprio Montesquieu: - A liberdade segundo a natureza, a do mundo sensível, que envolve a independência de qualquer forma de dependência – a liberdade de, a liberdade prática – e, - A liberdade do poder do sujeito de legislar para si, […] de iniciar por si um estado cuja causalidade não esteja, por sua vez, subordinada […] a lei natural a outra causa que a determine […](Kant) – a liberdade para legislar. A primeira, a liberdade prática […] é uma ideia transcendental pura, que nada contém extraído da experiência e cujo objecto não pode ser dado […] porque é uma lei geral, […] que, como não pode obter a totalidade absoluta das condições da razão causal, a razão cria a ideia de uma espontaneidade que poderia começar a agir por si mesma, sem que uma outra causa tivesse necessariamente de precedê-la para determiná-la a agir segundo a lei do encadeamento causal […] (Kant). Na segunda, o poder de legislar para si mesmo como autonomia, (liberdade para, contrasta com heteronomia) é acatado por uns, mas que os próprios autores podem não acatar, é admitido por outros passivamente, por a ele estarem sujeitos por forças que escapam à sua vontade livre e racional. A espontaneidade - a liberdade de - pura do entendimento ao ser dependente da receptividade para tornar-se efectiva, é descrita por Kant, a propósito da liberdade prática, como […] o ponto preciso das dificuldades que, desde sempre, vêm cercando a questão da possibilidade da liberdade […]. A espontaneidade é um acto realizado que combina as duas citadas propriedades da liberdade, a liberdade de como determinação categórica e, a liberdade para auto legislar, determinação hipotética. O homem possui em si mesmo a liberdade prática natural de exercer a sua vontade na escolha entre fazer o que a sua alma lhe dita, a voz interior de Sócrates ou fazer aquilo que pensa que deve fazer. Porém, se deve haver um princípio prático supremo com respeito à-vontade humana, Kant apontou-o: […] Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao memo tempo querer que ela se torne lei universal […] e ainda […] age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza […]. A sinceridade e a liberdade são propriedades espontâneas do entendimento humano, mas é pela vontade que o sujeito decide se tem e em que medida liberdade para que deva ou não ser sincero, de exteriorizar ou ocultar o que pensa, de mascarar juízos, de omitir injustiças, de submeter-se a desígnios exteriores que lhe são estranhos e cujas razões não alcança. Em Kant […] a vontade é uma espécie de causalidade pertencente aos seres humanos na medida em que são racionais; a liberdade seria a propriedade dessa causalidade que a torna efectiva, independente de qualquer determinação por causas estranhas […]. […] Que outra coisa, portanto, pode a liberdade da vontade ser se não autonomia, isto é, a propriedade que a liberdade tem de ser uma lei para si mesma? […] Depois desta visita a Kant, compreende-se que é na liberdade que a nossa sinceridade se expressa, livre de fingimentos. A sinceridade na antiguidade era enaltecida pelos estóicos que fundamentavam a sua filosofia no conhecer-se a si próprio. Diziam: […] “A vida” “não era demasiado longa para um tal estudo”. Este elogio à sinceridade passara das escolas para os frontispícios dos templos; todavia, não era muito difícil verificar que aqueles que aconselhavam os seus discípulos a trabalhar para se conhecerem, afinal não se conheciam assim tão bem: […] (Montesquieu) Contudo, Montesquieu criticava-os por não entenderem que a proximidade de si mesmos os impediam de se verem tal como eram. Na verdade temos bastantes dificuldades em nos analisarmos com a necessária imparcialidade em virtude dos nossos esforços introspectivos de processarem através do nosso amor-próprio. Logo, conscientes desta dificuldade, são mais sábios todos aqueles que nos dizem a verdade que não podemos ver em nós próprios, numa prática de perspectiva recíproca efectiva e na qual pode mesmo encontrar-se algum afecto. Prática que consistiria numa boa filosofia que, sem rejeitar o seu objectivo indagador e especulativo, constituiria um exercício pleno de sinceridade. E teria sido […] mais bela ainda, se alguns espíritos falsos, que a levaram demasiado longe, não tivessem excedido a razão mesma e, por meio de um refinamento de liberdade, chocado todas as conveniências […], disse Montesquieu com referência à escola dos cínicos. A nossa realidade exterior funciona como a verdadeira medida daquilo que é, do que simplesmente é, a sinceridade. A natureza é uma sinceridade. Apresenta-se tal qual é. Tudo aquilo que o espírito indagador do homem tem considerado como intencional ocultação da verdade pela natureza, não é de modo nenhum assim, já que a natureza nada oculta de essencial às nossas vidas. Parece evidente que a natureza nos revela com clareza e inteligência, justamente, tudo aquilo que necessitamos para a felicidade da vida humana no mundo. A todas as espécies de vida. Apesar de acusada por todos os seus desesperantes enigmas e mistérios, na realidade, termina servindo-nos gratuitamente o vigor e a tranquilidade que nos anima. III. O povo grego descobriu a Razão. Sócrates passeava nas ruas de Atenas e encontrava ou um militar ou um retórico ou outro destacado cidadão e fazia-lhes perguntas relacionadas com as suas actividades e achava as respostas de um modo geral coerentes. Mas quando perguntava sobre os fundamentos em que se baseavam, num simples, porquê?, praticamente nenhum respondia com coerência e começavam a divagar. Não eram insinceros, de facto, não sabiam. Sócrates nestas pesquisas, na sua ironia e maiêutica concluiu exactamente isso, os interrogados não possuíam um verdadeiro conhecimento adquirido pela razão, mas apenas a experiência adquirida pela autoridade e pela memória. Ao contrário do resultado obtido com a experiência feita com o escravo, considerado o mais ignorante dos homens. Mediante graus sucessivos de perguntas, Sócrates, ao obrigá-lo a exprimir o seu pensamento natural e espontâneo, levou-o mais próximo da verdade. Os resultados foram muito superiores aos obtidos com os nobres cidadãos considerados mais cultos. As respostas à sua inquiridora orientação, foram sinceras, sem fingimentos, revelando a verdade espontânea latente no escravo. Por isso, Sócrates considerava-se […] o moscardo sobre o cavalo, para que não adormeça nem caia na apatia […]. Platão, na Apologia de Sócrates, considerava algo de divino, a daimónion, uma espécie de revelação divina, […] aquela voz profética do meu demónio sempre falou comigo, contrariando-me até em assuntos de somenos valor, sempre que eu estava prestes a fazer algo que não devia; mas agora, como podereis ver, acaba de me suceder o que poderia reputar-se, e de facto se reputa, como o pior de todo o mal, o sinal divino não me contrariou, nem quando saí de casa de manhã, nem quando vinha para este dicastério, nem em nenhum momento da minha defesa. E quantas e quantas vezes me interrompeu em pleno discurso! […]. A espontaneidade da imaginação e do entendimento opõe à recepção das sensações, […] a capacidade de produzir representações […] (Kant) mas esta é incapaz de produzir conhecimento sem a participação da intuição, ou seja, sem a aptidão de recepcionar significações para a síntese do entendimento. Para que o acto espontâneo da síntese se realize é indispensável que exista algo presente na intuição, uma determinação da receptividade, a doação do objecto à intuição. O processo decorre de forma espontânea e natural, estranha e sem interferência da vontade do sujeito. O daimónion socrático era a voz da sua consciência, não um demónio, anjo, pessoa ou génio. Efectivamente nem Platão nem Xenofonte lhe chamam alguma vez de “demónio”, mas sim “sinal” e “voz divina”. […] De Xenofonte aprendemos que Deus dispôs os membros do homem em função do bem do homem […] e […] de Platão extrai-se que Deus além de um cuidado genérico por todos os homens, tem um cuidado particular pelo homem bom (não individual, mas pelo homem virtuoso) […] a ele que tendia com todas as suas forças ao bem, em certas ocasiões, a Divindade providente indicava a via justa […]. Sócrates chamou a esta voz interior, a voz de Deus, a voz que lhe indicava a via justa. Esta experiência da voz interior todos a tivemos alguma vez e procuramos mesmo provocá-la a que se manifeste num bom conselho. - Como é possível surgir esse desenvolvimento aparentemente fundado nas nossas próprias experiências e conceitos? - Sócrates revela-nos a existência de uma espontânea maiêutica, realizada pelo nosso próprio entendimento? Kant afirma […] “uma espontaneidade do conhecimento (em oposição à receptividade da sensibilidade) […], que inclui as categorias pelas quais estabelece […] a lei da unidade sintética de todas as aparências […], uma faculdade de juízos e uma “faculdade das regras” […] em que o entendimento “legislador da natureza” está sempre ocupado em investigar as aparências com a intenção de lhes encontrar quaisquer regras […] e […] as relações que estabelece entre entendimento e sensibilidade consistem em reunir intuições e conceitos, […] ambos são representações em que as primeiras se originam na receptividade e os segundos se originam na espontaneidade do entendimento […]. Essa espontaneidade do nosso entendimento em coligir e sintetizar questões que nos ocupam e preocupam poderá explicar a voz interior escutada atentamente por Sócrates, que nela confiava por saber não ser enganado por ela. Ou seja, essa voz era sincera na espontaneidade desde o entendimento, porque não passava pelo julgamento da razão. O engano surge na razão. IV. A vida privada é do domínio pessoal e confidencial do indivíduo. É nota dominante na relação sigilosa entre indivíduos, que guardam ciosamente entre si os seus assuntos e discordâncias, deixando transparecer para o exterior uma estabilidade e correcção consentâneas aos cânones das sociedades em que vivem em cada época. A vida privada é protegida por lei, impedindo intromissões não consentidas pelos próprios por eventualmente tenderem a desacreditar maliciosamente os envolvidos. A solidez da privacidade é tanto mais segura e permanente quanto mais sinceros forem entre si os indivíduos compreendidos no grupo, em oposição à insinceridade que projectam para o exterior. A análise que cada um faz sobre a sua própria capacidade de ser sincero, parte do prazer que descobre na sua prática, ao encontrar no seu […] próprio coração, com que supra a insuficiência do meu espírito, em ser o pintor, depois de ter trabalhado toda a vida em ser o retrato, e em falar enfim de uma virtude que faz na vida privada o homem de bem e no comércio dos grandes, o herói […]. (Montesquieu) V. Praticamente condicionada em todas as áreas de actividade humana, a vida em sociedade permite uns aos outros se servirem de guias e verem-se a si próprios como são, […] para que enfim, através de um comércio sagrado de confiança, pudessem dizer-se e transmitir-se a verdade […], (Montesquieu) como um bem que todos devem a si mesmos. Aqueles que decidem não usar de sinceridade são como ladrões de um bem que pertence a todos, esvaziando de sentido o desígnio divino do exercício da verdade pelas suas criaturas. Infecta as relações da sociedade em todos os seus patamares, rompe a confiança entre os indivíduos no prosseguimento do desenvolvimento da pessoa humana, a perfeita criação divina no mundo e seu mediador. Tanto no tempo do nosso autor como nos dias de hoje é evitado o ensino aos jovens, a título preventivo, do que é o mal, quais os defeitos do homem que não devem ser seguidos, por que isso significaria o ensino daquilo que, devido à sua pouca idade, não conhecem nem pensam exista. O não ensino do perfeito valor humano da sinceridade, com a desculpa que é desumano afligir os jovens quer pelos defeitos que não têm porque são jovens ou pelos defeitos que sempre terão, todavia, […] por felicidade ou infelicidade, os homens não são tão bons nem tão maus como os fazem e, se são poucos os virtuosos, nenhum há que um deles não possa tornar-se. […] (Montesquieu). A prática do discurso político corresponde a um ponto de vista de Pico della Mirandola, que considerava que os “outros” não estão preparados para suportar a verdade, logo, esta não podia ser-lhes revelada. Este ponto de vista é determinante para a insinceridade. Precisamente o mesmo sucede quanto às honras e às dignidades reservadas aos mais insinceros, ou seja, àqueles que melhor mentem. Montesquieu cita como exemplo da importância da sinceridade na política, o facto de nela existirem homens sinceros, porque os cidadãos tendem a interpretar a presença desses indivíduos como um sinal de que podem confiar. Esperam que pelos seus conselhos possam vencer ou minimizar os abusos e desonestidades do poder. Todavia, quando os governantes se deixam rodear de aduladores, caiem em excessos, perdem a dignidade e desacreditam o governo. Os homens sinceros apontam aos governantes a verdade que precisam para tomar atitudes e decisões correctas, tal como uma luz na tempestade. Situação semelhante aconteceu com os servos de Deus e com os falsos profetas contra os quais estes se erguiam: o povo, sem saber em quem acreditar, hesita entre Deus e Baal. Como poderia o povo saber quem falava verdade? Só pela sinceridade daqueles que anunciavam uns ou outros actos. E deu o exemplo da China, em que um príncipe em determinada altura decide criar a função oficial de kotaou, destinada a advertir o príncipe de erros de conduta. A virtude da sinceridade sempre teve quem falasse por ela, não cedesse à adulação e se mantivesse firme na defesa das leis. Até Platão afirma nada poder conceber de mais corrupto que a adulação, só comparável aos rochedos que escondidos entre duas águas causam tantos naufrágios. Homero diz que um […] adulador é tão temível como as portas do inferno […], e Eurípedes confirma, […] é a adulação que destrói as cidades melhor povoadas e faz tantos desertos […]. Feliz o governante que se rodeia de pessoas sinceras que se preocupam com a sua reputação e virtude. Montesquieu chama a atenção para a superior necessidade da prática da sinceridade na vida pública, nos governos e nas leis, pois só desta maneira é possível criar laços de confiança verdadeiros e duradouros, e também uma relação correcta com a justiça e claridade nas causas defendidas. VI. Nas sociedades actuais a sinceridade não é uma preocupação fundamental, e tanto é assim que comummente se usa a expressão “sinceramente lhe digo…” ou “falando sinceramente…” ou agora “com toda a sinceridade…” isto e aquilo”, ou seja, quando se fala correntemente no dia a dia não se espera que haja sinceridade ou que tenhamos algum dever de ser sinceros. A sinceridade, parece-me ter ficado bem claro, exige a prática da liberdade. Este tema da liberdade sempre ocupou os pensadores de todas as épocas sem que tenham entretanto chegado a um consenso. A liberdade é a medida única e definitiva para a presença do homem no mundo e para a sua realização como pessoa humana. Por isso tem sido considerada um bem absoluto e propriedade exclusiva do indivíduo. Tal como a alimentação, particularmente a água que mundialmente se considera um bem absoluto que não se pode negar a ninguém. Todavia, a história do homem demonstra que esses bens, teoricamente pertença incontestada do homem, têm lhes sido negados ou dificultado o seu acesso livre sempre e quando outros interesses «maiores» o exigem. Nesta perspectiva não podemos considerar a liberdade como um bem pleno de existência e acesso a todos os homens. Desde logo não se pode praticar a sinceridade com os outros. Mas ouve-se falar sistematicamente nos valores da democracia, da liberdade democrática e política do ocidente. Assim se diz de facto, porem sem projecção na realidade. O homem pertence à Natureza. Nela nasceu, nela sobrevive, multiplica e dissolve. Nesta vivência sequencial não há uma liberdade claramente definida e concreta. Mas há sinceridade mesmo que não seja praticada. Na Natureza tudo é sincero tal como qualquer ser vivo: tudo e todos fazem o que devem. E, assim é de tal forma, que o homem organiza a sua vida segundo os seus ciclos lunares e solares. O homem geral não tem nem nunca teve qualquer diferendo com a Natureza. Porém, o homem particular entendeu que a Natureza era cansativa e desinteressante na sua rotina vital. E criou uma outra natureza, esta totalmente inventada por si, como um enorme puzzle cópia minguada da verdadeira natureza. Uma pobre dobragem. Para esta invenção serviu-se transformando, modificando e adaptando materiais retirados da Natureza Mãe e com ele forjou os planos de um mundo “tecnológico melhor” para o humano. Inventou máquinas, meios de transporte para percorrerem a terra, mares e ares, na vertigem embriagadora auto contemplativa dos seus próprios feitos, em auto elogio desbragado, chama-lhe milagre tecnológico e económico. Nesta dobra reside a insinceridade, a negação da liberdade, a fome, o crime. Neste duplicado, os homens dominam os outros homens, devoram-lhes a felicidade e a alegria, escravizam-nos na produção de objectos que a Natureza não sabe que fazer com eles. Este “duplicado” que parasita tudo o que a Natureza possui, parasitou igualmente a originalidade do homem, retirou-lhe a essência simples da sinceridade, lançou-o na negrura da insegurança, do fingimento, afastando-o do seu dever de conformidade com a sua Natureza. Montesquieu, escreve sobre os malefícios que a insinceridade gerou na sua época e, verificamos que passados séculos continuam aí evidentes. O homem está aprisionado no “duplicado” criado por outros motivos e causas que não o contemplam nem respeitam como ser humano. Porém, é neste “duplicado” que Kant reintegra - a ligação do homem à natureza no seu imperativo categórico - as dificuldades do homem quando lhe aponta: […] Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza […] e […] Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio […] Em todas as situações do conceito do dever necessário para consigo mesmo, o homem não deve fazer nada contra a sua integridade fugindo a uma situação penosa, pois estaria quebrando o imperativo categórico acima citado, servindo-se do homem, ele próprio, como meio; no dever necessário para consigo próprio o homem não pode fazer promessas a outro quando não tenha a intenção de as cumprir em virtude de se estar usando dele como um meio e não como um fim; com respeito ao dever contingente para consigo mesmo não basta uma acção que não esteja em contradição com a humanidade em nós próprios como fim em si, mas é imperioso que concorde com ela; no seu dever para com terceiros, pois sabe que o fim natural que todos os homens têm é a sua própria felicidade, logo deixar de contribuir para ela é subtrair-lhe a possibilidade dessa felicidade, uma concordância negativa com a humanidade como fim em si mesma, porque se um sujeito é um fim em si mesmo então os seus fins são tanto quanto possível os meus […]. E, como se isso não bastasse a pureza ingénua da sinceridade é vista como marca de parvoíce, de imbecilidade. Tal como no seu tempo, também hoje a […] a franqueza é olhada como um vício da educação. Nada de pedir que o coração saiba manter o seu lugar; basta que façamos como os outros. É como nos retratos (pinturas) aos quais não se exige mais do que parecença […]. Na verdade um homem que só tenha para dizer a verdade é olhado como “um perturbador do prazer público”. Tirar aos sentimentos a sinceridade é desfigurar, é impedir o que há de mais livre, a liberdade do amor. Diógenes tinha razão quando dizia que as inscrições colocadas nos túmulos não eram mais que sinais do que não existe. Nas relações com os outros deve dosear-se a sinceridade em conformidade com a liberdade que essa relação socialmente permite, evitando controvérsias improdutivas, ou crispações provenientes de opiniões contrárias. É suficiente concordar sem dar demasiada importância ao facto das opiniões produzidas serem mais ou menos verdadeiras. Conhecer o valor de um verdadeiro amigo é sabê-lo sincero mesmo que por vezes seja menos agradável pelas suas críticas. A verdadeira amizade não é assim a servil complacência que tomam como sinal de verdadeira amizade; como dizia Pitágoras “confundem o canto das Sereias com o das Musas”. VII. A sinceridade é uma relação assumida entre o eu e a nossa consciência ou entendimento, voz interior, que nos acompanha e aconselha sem enganos, uma ética de vida, como prática livre e sentida de conformidade com o que o humano é no universo. A ética é a forma do carácter do indivíduo, que vive uma vida de virtude, ou seja, não é por obediência a nenhuma lei exterior que toma a postura humana adequada, mas toma-a pela adequação interior do seu eu aos princípios universais, o amor pelo homem como pessoa humana. A força da sinceridade […] vereis uma certa coragem difundida em todo o seu carácter […] uma alma isenta das nuvens do temos e do terror, um amor pela virtude […] de um tronco tão nobre e tão belo não podem, nascer senão ramos de ouro […]. (Virgílio). Neste percurso sobre a sinceridade abordei os pontos de vista de Montesquieu expostos no seu livro que serviu de base ao trabalho. Também visitámos Kant e as suas opiniões sobre a fonte da nossa liberdade, que brota espontânea no nosso entendimento como uma dádiva. Um milagre. Nasce e desenvolve-se connosco. Kant racionalizou a seu percurso até à formação dos seres do pensamento, da sua verdade natural, constitutivos da nossa liberdade possível. Comentário Porque razão quando mais vivemos em sociedade mais nos afastamos do genuíno, do verdadeiro, recorrendo ao fingimento? Quando pretendemos convencer alguém de que o que dizemos é sincero, parece imperiosa a necessidade de enfatizar essa qualidade: “Com toda a sinceridade lhe digo…” E porquê? Porque a natureza ambígua da realidade propicia esse movimento sinusóide de arcos assimétricos de irregulares periodicidades que cruzam sem detença o leitmotif universal da verdade, onde o homem ambiciona estar. Mas essa presença na verdade ainda não aconteceu. Continua à procura das leis que hipoteticamente lhe dariam esse equilíbrio do saber regular da linha central. Porém, a sua vocação mediadora impõe-lhe a posição entre dois planos obrigando-o a assumir-se como ser humano, em tudo o que lhe é inerente, uma eterna procura do peso certo: na indagação filosófica, na vida privada, civil ou pública, é-lhe exigido que decida, que actue, que faça o que deve, isto é, que decida o que lhe for pedido em cada momento diferente no ciclo vital. Porém nem tudo é negativo neste cárcere sinusóide que habitamos. Com algum espírito Montesquieu considera que a vida em sociedade não trouxe ao homem a vantagem da sinceridade consciente que a convivência das bestas manteve entre elas. Esta sinusóidade é a diferença que distingue a capacidade do homem tomar decisões racionais. Numa observação subtil, Montesquieu concluiu que não há quem conhecendo bem todos os seus defeitos se mantenha nessa contradição eterna, pois deve tornar-se virtuoso, quanto mais não seja por fadiga, o que nos explica que, fazer o mal e reconhece-lo, pode resultar numa ambição pelo bem, tanto pelas alegrias interiores da consciência que “alimenta os sábios”, como pelo receio do desprezo que possa causar nos outros. Temos muitos exemplos na sociedade de indivíduos que começaram por ser descaradamente insinceros, porém, depois de alcançarem um certo sucesso social, conscientemente arrepiaram o caminho, mudando para paladinos da honestidade e da sinceridade. Mas, há no mundo demasiado orgulho e narcisismo para que seja fácil a tarefa de revelar-lhes os seus erros para que se emendem - como a função atribuída aos funcionários kotaou. Estaremos condenados para sempre à escravatura do disfarce dos nossos sentimentos? Será meritório servir a esse deus da complacência? Deveremos por comodidade e fuga à diferença, imitar a vileza do cortesão e mantermos a verdade sepultada sob falsas delicadezas, chamando-lhes arte de viver? Talvez. Porém, com baixeza. Uma natureza que ondula entre dois planos, o que é e o que não é (que do ponto de vista humano poderiam ser coisas como o bem e o mal), e que permanentemente se alternam, quando um é, logo o outro não é, nunca regularmente situados, nunca regularmente fixos, responde à perplexidade de Montesquieu quando diz que deste modo não há assim diferença ou reconhecimento entre conhecer o mundo e enganá-lo. BIBLIOGRAFIA Obras Principais: Charles Secondat Barão de La Bréde e Montesquieu, O Elogio da Sinceridade, Éloge de la Sincérité¸Trad. Miguel Serras Pereira, Fenda Edições, Lisboa 2005. Critica da Razão Pura, Kritik der Reinen Vernunft, Immanuel Kant, Trad. Manuel Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Matujão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001. Fundamentos da Metafisica dos Costumes, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Immanuel Kant, Trad. Paulo Quintela, Edições 70, Lisboa, 2005. Ética a Nicómacos, Aristóteles, Trad. do Grego por Mário da Gama Kury, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 2001, 1127 b Parménides, Poema, Trad. do Prof. António Mesquita a partir da edição Diels-Kranz. Obras de consulta: Dicionário de Filosofia, Dictionnaire de Philosophie, Gérard Legrand, Trad. Armindo José Rodrigues e João Gama, Edições 70, Lisboa, 2002. Dicionário de Filosofia, Simon Blackburn, The Oxoford Dictionary of Philosophy, Trad. Vários, Gradiva – Publicações, Lisboa, 1997 Elementos Básicos de Filosofia, Philosophy: Yhe Basics, Nigel Warburton, Trad. Desidério Murcho, Gradiva – Publicações, Kisboa, 1998, Dicionário de Filosofia, António Lobo, Plátano Editora, Lisboa, 1999, Dicionário de Kant, Howard Caygill, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro 2000, Verbete: Liberdade, p.216, História da Filosofia Antiga, Storia della filosofia antica, autor e trad. Giovanni Reale, Ed. Loyola, S. Paulo, 2002, V. III, pp. 298-299.

A Mentira

20081015 «A MENTIRA» I. Desde muito cedo sabemos o que é mentir sobre factos e acontecimentos que não queremos divulgar ou se temos de os divulgar que seja segundo o nosso ponto de vista. Portanto, com maiores ou menores razões, todos nós em algum momento participamos nessa acção. Posso definir a «mentira» como negação duma coisa, material ou imaterial, que pessoa ou instituição considere verdade. Todos temos a noção clara deste acto porque a sua prática nos obriga a pensar, mais ou menos conscientemente, em direcção contrária ao movimento natural da intuição. A nossa intuição flui espontânea e concomitante com a exterioridade empírica do mundo, tal como o peixe navega nas águas que o envolvem. Digo intuição natural porque o humano antes de chegar ao grau de cultura estruturada desta nossa época, assim viveu e assim sobreviveu. Toda a fenomenologia natural, dá-se, espontânea, aí, fora de nós, porém, sem nunca nos ignorar, pelo contrário, dominando todo o nosso fluir. Como negá-la? II. Mesmo dominados por esse exterior dinâmico os humanos possuem a noção da consequência da pratica da acção da «mentira» e, de tal modo, que pela atitude, insinuação e silêncios, é recorrente a tentativa de direccionarem os seus efeitos para determinado fim. Quando essa tentativa se complica, dá-se início a um processo de diversão através da adição à primeira de novas ou semi-mentiras. Penso ser útil ao desenvolvimento deste tema separar a acção da «mentira» por duas áreas: numa, a que chamaria natural, coloco as acções e as respectivas consequências das Verdades empíricas e metafísicas que constituem o padrão genuíno que a Natureza determina sem recurso a qualquer língua falada e, na outra, que designaria humana, deponho as acções correspondentes à negação e substituição da Verdade natural pelas imitações e suas consequências. Como a linguagem, escrita ou falada, é o instrumento por excelência do pensamento, tenha-se em mente que as coisas abstractas ou empíricas, no processo da razão e compreensão, são na generalidade simplesmente designadas por palavras que as representam, logo, «todo o conhecimento se obtém pela comparação de duas ou mais coisas», entre duas ou mais palavras. Há duas formas de comparação: a da “medida” ou grandeza e a da “ordem”. Para comparar duas grandezas ou multiplicidades é exigida uma unidade comum que se aplique, adequadamente, à análise de uma e de outra. Saussure, aponta os signos como instrumentos adequados de análise, por marcarem as identidades e as diferenças, os elementos necessários à taxionomia/ ordem por um lado, e por outro, as semelhanças empíricas das coisas e o repetido da Natureza/ a grandeza. Com Saussure, o signo da linguagem adquire desta maneira uma dupla acção: o conceito – conteúdo ou descrição que significa a coisa - e a forma - invólucro ou som que representa o significante. Portanto, se o signo é pura ligação de um significante a um significado, essa relação só pode ser estabelecida no modo geral da representação. Ambos estão ligados na medida em que um e outro são representados e em que um representa realmente o outro. Foi Saussure quem nos “princípios para uma semiologia geral” define o signo como «ligação a um conceito de imagem» (forma), e recupera a ideia clássica de se pensar a natureza binária do signo. Ou seja, «uma relação de ordem e medida não pode ser restabelecida entre duas coisas a não ser que a sua semelhança permita compará-las». Se a «mentira» não é comparável com as coisas (na ordem e na medida) que inverte, então só pode ser entendida como um movimento entre duas posições ou lugares opostos ou contraditórios, em que uma coisa ao mudar de posição se transmuda no seu oposto. Deixa de ser aquilo que é para ser outra coisa. Logo, a mentira funciona como uma terceira posição, a convenientis, que classifica a relação entre duas coisas: qualquer delas pode ser «verdade» ou «mentira» segundo o interesse em causa. É nesta dupla acção que a ideia de «mentira» como signo sucumbe ao não ser comparável com nenhuma das duas coisas que quer relacionar, ou seja, que quer não relacionar. Ela sobrevive apenas como método sofístico, isto é, atribui aparências de Verdade ou mentira a alguma coisa que não é nem uma nem outra. Este é o justo poder fáctico da «mentira». Desta maneira, a disputa entre «verdade» e «mentira» só ocorre no domínio material e/ ou abstracto do idealizado humano. Porém, a Verdade, tem representação tanto no significado como no significante: tudo o que existe na empíria natural é Verdade (verdadeiro), na medida em que não possui contrário. A Natureza fonte de todas as coisas físicas existentes e até do próprio mundo, não mente. É o padrão que nos diz o que é Verdade ou não no domínio dos objectos de sua criação, objectos que garantem a subsistência de toda a Vida tal como a conhecemos. Esta existencialidade é absoluta, irredutível e insofismável e, também, necessária e suficiente. Em rigor, não dispomos de nenhuma outra medida de aferição. III. Paralelamente à Natureza, a imaginação produz outra «natureza» - aquela área que já referimos e que passaremos a chamar «mundo» entre aspas para o distinguir do mundo natural - a modos como o Minotauro, metade homem e metade touro. A natureza humana seria representada nessa dupla personalidade do Minotauro: por um lado humanista e racional e por outro espontânea e instintiva, sem prejuízo do seu substrato natural. Seja qual for a dimensão ou consequência, a «mentira» é uma acção humana capaz de inverter tudo, quer simplesmente negando o mundo natural quer mesmo afirmando ou negando a imitação por si criada, independentemente de ser ou não verdade. Suaviza-se o conceito «mentira» atribuindo-lhe predicados, como «piedosas» aquelas que se produzem quando queremos evitar magoar alguém; quer pelo comportamento, atitude ou inflexão da voz, «mentimos» para procurar comunicar algo ou acontecimento de modo menos doloroso, como, por exemplo, um falecimento. Mas, na realidade, estamos, simplesmente, a mentir. Então o que é a mentira? Tudo indica que é apenas afirmar o contrário daquilo que é ou se considera ser «verdadeiro». Concretamente, sabe-se o que é mentir porque para haver a «mentira» basta que algo seja «verdade» ou considerado como tal. Porém, pode-se esperar que o desconhecimento da Verdade impeça a produção livre da «mentira»? De modo algum. A «mentira» corre livremente sobre realidades e sobre abstracções. Ela possui a maleabilidade e a penetração fluida das águas, podendo progredir sobre quaisquer outras, até ao infinito. A «mentira» pode cavalgar com sucesso qualquer outra. Se afirmei que a única Verdade é o paradigma da Natureza, uma Verdade irredutível e insofismável, então, não há mesmo nenhum outro tipo de Verdade? Só este? Apesar da peremptoridade e evidência da afirmação sobre a Verdade ser exclusiva da Natureza, que mantenho, tenho de aceitar que há outra coisa também chamada de «verdade», ou seja, aquela que é produzida pelo humano. Um dos mais conhecidos métodos para a encontrar é-nos dado pelas quatro regras cartesianas contra a dúvida: 1) Só aceitar ideias claras e distintas, ou seja, o evidente. 2) Resolver um problema é dividi-lo tantas vezes quantas necessárias até encontrar a solução. 3) Os pensamentos organizam-se do mais simples para o complexo. 4) Numa série verificar todos os conceitos para evitar enganos ou lapsos. Recorde-se que os pensamentos são tratados como objectos abstractos que se podem dividir e reconstruir, porém, enquanto à empíria se refere os objectos já são físicos. Vejamos: A primeira regra é de compreensão clara. A 2ª regra, em que «resolver um problema é dividi-lo tantas vezes quantas necessárias» significa pegar num objecto e dividi-lo sucessivamente em partes cada vez mais pequenas até encontrar a parte indivisível que o compõe, numa ordem do maior para o menor, o que, provavelmente, nos conduz a algo extremamente ínfimo de difícil ordenação taxionómica ou ao nada. A regra 3ª ao determinar que «os pensamentos se organizam do mais simples para o mais complexo», estabelece a possibilidade de percorrer o caminho inverso aconselhado na 2ª, ou seja, a reconstrução do objecto ao seu estado original. A 4ª não carece de interpretação. Como disse, no domínio do pensamento estes movimentos de desconstrução e reconstrução são possíveis, pois são objectos abstractos. Mas, no domínio da empiria esses movimentos são, até hoje, irrealizáveis. Ou Descartes se esqueceu de nos dizer ou não sabia como sair deste imbróglio empírico: se dividimos um objecto até ao seu ponto menor, o que é que aprendemos? A sua composição em partes. Todavia, continuamos sem saber o primordial que permitiu o surgimento do objecto. Consideremos que para construir uma cabana de madeira, cortam-se todas as peças à medida e juntam-se segundo um plano para formar a cabana. Peças essas que em qualquer momento se podem separar e assim desmontar a cabana. Este trabalho de construção, desconstrução e reconstrução pode ser feito tantas vezes quantas se quiser. Porém, o que é a madeira? O que é essa matéria? Como se forma? Pode-se dividi-la até sua mais ínfima parte, mas essa divisão, nunca revelou como a partir do pó final, podemos percorrer o caminho inverso, refazendo-a. Esta tentativa de reconstruir a matéria é a busca do Santo Graal da ciência em todos os tempos. Para Descartes este seria o caminho seguro para vencer a dúvida, ou seja, para encontrar a certeza, a Verdade, o que a encontrar-se daria resposta a todos as interrogações Humanas. Muitos filósofos e cientistas consideram-no o pai da Filosofia moderna, por ter chegado à famosa conclusão: COGITO ERGO SUM, ou seja, o pensamento é a essência do ser e este pode chegar à Verdade. Todavia, mais tarde, Descartes, viu-se obrigado a considerar a existência de Deus, já que sem Ele, o COGITO não era assim tão seguro na descoberta da Verdade. Estas quatro regras têm sido largamente usadas em todas as áreas do conhecimento e particularmente da ciência à procura da chispa primordial constitutiva da matéria. Passados quatro séculos desta e doutras metodologias a Verdade mantém-se inconquistada. IV. A Natureza continua mantendo bem guardados os seus segredos, mas o homem desejoso de desvendá-los, não desiste. É então forçado, inspirando-se na fenomenologia da Natureza, a construir paradigmas matemático geométricos prováveis que desenhem estruturas para uma «verdade» aproximada e desta maneira, com eles validar o seu «mundo». Este grande designio de conhecer e dominar o mundo exige mais e mais instrumentos para elaborar planos, sobre o quais vai exercendo a sua vontade com o sentido de construir a sua «verdade» de um «mundo» melhor do que aquele sem custos oferecido pela Natureza. Alguns humanos estão convencidos que o «seu mundo» será muito melhor, muito mais acolhedor, justo e obediente, por que o pode modificar sempre que lhe convenha e, no limite, destruí-lo e substituí-lo por outro que entretanto lhe pareça ser mais grato. Recorde-se Alexandre, Napoleão, as Guerras Mundiais, os Goulag, e outros. Ou seja, querer e poder manipular no «seu mundo», precisamente, o que a Natureza não consente no dela. Para essa manipulação as ciências preparam especialistas, que se empenham na descoberta do segredo da capacidade da repetição da Natureza, o Santo Graal de todas as ciências. Com esse objectivo surgiram inúmeras organizações científicas e para-científicas, e cada uma, nas suas próprias estruturas matemático científicas estabelece a sua «verdade». Perante tão ampla variedade de instituições de investigação, profissões e saberes que se opõem, tornou-se imperiosa a necessidade de erguer novas organizações, agora reguladoras das primeiras que se especializam na procura e implementação de pontos de concórdia (como por exemplo as comissões de ética) que facilitem a convivência de tantos princípios oximoros. A real Verdade da natureza, do mundo ou do universo, tudo o indica, é uma Verdade metafísica inacessível à compreensão humana. Parece, então, poder afirmar-se com alguma razoabilidade que a Verdade não é um bem disponível para ser conhecido em absoluto. A experiencia do CERN no subsolo francês e Suíço cujo inicio de construção remonta aos anos 80 e os revezes entretanto sofridos indicam a probabilidade do homem estar distante do conhecimento do Uno ou partícula primordial materializante e consubstantiva de todas as matérias vivas existentes. V. Ora, se a verdade não é conhecida, não pode ser contraditada. Se não é contraditável então a «mentira» também não pode existir no contexto do mundo natural. Então, repõe-se a pergunta: o que é «a mentira»? O conceito «mentira» é inerente às estruturas humanas. O político é confrontado pelas mentiras que produz porque o ouvinte pode comparar o que ele afirma com a realidade social conhecida referida. O médico mente quando esconde a realidade do mal que aflige o seu paciente, porque, além dele próprio, a verdade do estado de saúde do doente é conhecida pelos seus colegas. O ancião ou o jovem mentem quando dizem uma idade que não têm, porque alguém sabe não ser essa e eles não a podem provar. Do mesmo modo mente o sujeito que se assume ser aquilo que não é mas de que está convencido. Revisitando as mencionadas áreas em que separei os conceitos «mentira» e verdade: - Na área do mundo natural, mentir é difícil devido ao desconhecimento sobre a verdade da Natureza, para além dos fenómenos superficiais das suas manifestações. Portanto a «mentira» emerge da especulação ou da invenção sobre ela. - Na área paradigmática matemático científica, estruturada – mas não estruturante - os conceitos de «verdade» e de «mentira», vivem em plena acção aniquiladora mutua, ou seja, «isto é assim mas podia não ser», logo, conhecendo-se aquilo que é e aquilo que não é, é tão fácil produzir a «mentira» como a «verdade». É só escolher a posição ou lugar mais convenientis. Esta a contradição das nossas sociedades: a «verdade» e «a mentira» são usadas como instrumentos elocutórios para atingir fins não revelados, mas benéficos ao ganho de um escol. Que posso dizer sobre os delírios ou imaginações em que muitos batalham por uma «verdade» que alguns pensam só «existir» nas suas mentes? Ora, como nem a dúvida nem a perseverança abandonam o homem, só o futuro dirá em que grau essas ideias são delírios. Qual a razão da existência da dúvida? Porque se duvida? René Descartes, «Regras Para a Direcção do Espírito»; René Descartes, «O Discurso do Método», Editora Replicação, Lisboa, pp. 32-50.