segunda-feira, 17 de maio de 2010

Contemplação 1

Contemplação 1 O homem é uma coisa entre as muitas coisas que provavelmente existem pelo mundo, com as quais supõe contactar através das sensações. E quais as sensações que marcam definitivamente esse contacto com o mundo? São, irredutivelmente, o tacto pela pele em contacto permanente com todo o meio ambiente e a visão. A consubstanciação plena do mundo é realizada no nosso espírito pela visão que a ele chega através do órgão. A visão, misteriosamente, até nos fornece aproximações de todos os outros sentidos: é assim com o cheiro, olhando um cadáver animal instintivamente afastamo-nos evitando o cheiro como se o estivéssemos cheirando, o do paladar, perante um prato de comida, igualmente a sensação do peso e do tamanho de um objecto e o ouvido que nos dá a origem dos sons para onde o olhar se volta imediatamente. E também a noção do perto e do longe. A nossa visão não penetra no mundo, mas é o mundo, a luz do mundo com todos os objectos que ele comporta que vem até ao nosso espírito, como quando se abre uma janela e tudo o está lá fora nos é visível. Logo a contemplação, deverá ser um exercício do espírito sobre si mesmo, sobre os dados sensitivos já guardados. Se a nossa visão não penetra no mundo, então nunca saímos de nós. Tudo acontece visto da «janela». Quando a janela está cerrada, não vimos nem sabemos o que se passa lá fora. Tal como no sono. Imagine-se a superfície exterior do nosso olho, como a superfície exterior do vidro da janela. Quando nos afastamos da janela só vimos no exterior aquilo que cabe na área vidrada da janela; quanto mais nos aproximamos da janela, o exterior vai-se ampliando e alcançamos o panorama máximo quando encostamos o nariz à janela. Não saímos da janela para olhar os lados, tal como o nosso olho não sai da órbita para olhar mais para o lado. Esta limitação fisiológica é superada pelos movimentos laterais e verticais da cabeça. Então, podemos talvez, com alguma evidência, aceitar que a visão não penetra, antes é penetrada, logo, a contemplação só ocorre no nosso espírito. Isto será comparável com um livro? Só podemos ler o que lá está escrito, porém, cada pessoa que o lê encontra-lhe interesses em muitos sentidos. Daí a riqueza de interpretações que se fazem dos mesmos textos. Por exemplo, dizem que há mais de mil religiões que garantem serem verdadeiras porque se apoiam na interpretação correcta dos textos sagrados da Bíblia. Todas garantem interpretarem justamente os textos. Se assim é, então no caso da contemplação, cada um contempla e interpreta segundo as experiencias e saberes que acumulou no espírito, ou alma, ou memória ou mente. Como é possível harmonizar tantos conteúdos? Como realizam os budistas a contemplação? Quem me pode ajudar sobre esta questão?

Reminiscência... 3

Reminiscência… 3 O cacilheiro deu as suas costumeiras apitadelas de aviso de partida. Soltaram as amarras e o motor acelerando, puxou-o, desatracando-o do pontão. E lá segui rio adentro. O movimento suave convidada a recordações. Há anos que diariamente fazia aquele percurso, acompanhado com praticamente os mesmos rostos. Preocupados. Apressados. Sonâmbulos àquela hora da manhã. O medo acompanhá-los-ia na vigília? De naufragar? Todos têm presente um acidente na década de trinta com muitas vítimas. Ou ignoram? Mas têm medo. Que suscita o medo? O ruído regular da proa cortando as águas que espumosas correm ao longo do barco? Proa subindo e descendo suavemente sobre o casario da cidade ao fundo que lentamente cresce, cresce. Vem na nossa direcção, aproxima-se mais e mais. Que vimos? Por que ondula a água do rio? Naturalmente, porque é viva. Logo move-se. Mas porque assim? Ondulante?
Seguindo… No deserto. Nada tem interesse. O centro da vida e do mundo está ali. Como a borboleta ao redor da luz. O fulgor humano do contacto que se almeja e teme. Que dizer? Olhar. Só olhar. Numa admiração sem limites. Contemplação do rosto imortal que se deseja e teme perder. Dele imana atracção. Arrebata. O olhar escuro. Não me deixa. Não o quero perder. Não quero. Que fazer? Como guardar? Como ficar? Que dizer? Ruídos e mais ruídos. Todos fazem ruídos. Logo eu também. Que digo? Não sei. Terá interesse? Pelo menos a luz ilumina-me. Que belo. Que prazer. O tempo corre. Não podes ficar mais. Corres o perigo de cansar. Vá. Anda. Pensa uma próxima. Para voltares a temer que acabe. Para voltares a inventar causas. E o tempo voa. Imaginada luz que nunca te abandonou. Infeliz espírito. Às escuras anos e anos esperando a materialização da esperança. Volverei a ver a luz? Volverei, sim. Volverei a sentir. Que silêncio. Nele estou perpetuamente. Encontrei muitas luzes mas nenhuma como aquela. Atrai-me e faz-me sonhar. Sonhar com a felicidade. Estivesse onde estivesse, acontecesse o que acontecesse, dormisse o que dormisse, aquele olhar atrai-me noite e dia sem cessar. Viver. Que viver? Não sei. Estava bem. A musica encheu me. O som. A harmonia. Joga bem com o olhar. Mais luzes. Dá, luzes. Sim. É verdade. Luzes que não aqueciam. Luzes exigentes. Faltava lhes a doçura. O inebriamento. O amplexo. Assim entrei na vida adolescente. Falei para mim. Em silêncio. Falei para a luz. Em silêncio. E sempre recebia calor. Silêncio. Quente, dedicado, amante. Mas acorda. Não é assim que se está a passar. Que me importa a realidade? É assim que vivo. Que me sinto. Para quê ver o que não quero ver? É assim que quero viver. Qualquer coisa serve para alimentar o corpo. Quando a alma está insaciada. Trabalho. Sair para qualquer lado. Correr para qualquer lado sem ver para onde nem como nem o que fazer. Só contemplar a luz que não me deixa. Flutuar. Imaginar já a companhia. Vou, vou. Caminho ao seu lado. Está a meu lado. Ouve-me e aprova-me. Diz que sim. Que faço bem. E assim aconteceu. Nunca me abandonou esse rosto, esse olhar. O maravilhoso da vida foi sabê-lo sempre a meu lado. Mas isso é imaginação. Isso é sonho. Isso não existe. A esperança existe. E o a luz também. Onde está? Não importa. Se há aparecerá. Surgirá. Inesperada e confortante. Isso pode nunca chegar. Que importa? Se vivo. Quente. Animado. Confortado. E assim aconteceu. Surgiu. Alma iluminada como nunca sacia-se. Insaciável. Quer voltar sempre para a luz. Dissolver-se nela. Alma e luz numa só. Afinal sempre havia. Tinha de haver. Tudo que concebemos existe. Há que saber sonhar. Acreditar. O mundo existe. A luz também. A que almejamos também. Pode nunca encontrar-se. Mas que existe, existe. Esta aí. Resplandecente. Adorável. Encontrada a luz. Reencontrada a luz. Que fazer. Como não perder? A luz! Vida com luz. Que mais se pode desejar? Que bom. Mas como viver? Que há para oferecer à luz que esta não tenha? A luz é luz. Oferecer o obscuro silêncio? Questões? Poupa a luz. Para que não esmoreça. Para que seja imorredoura. Para que seja o que é: luz. Continuar buscando como não achada? Não, nunca mais. Ela existe. Não a podes perder, nunca, nunca mais. Mas como? Que tenho para dar? Que bom. Ocupar o tempo. Tempo. Tempo...

seguindo...