sábado, 7 de fevereiro de 2009

A Mentira

20081015 «A MENTIRA» I. Desde muito cedo sabemos o que é mentir sobre factos e acontecimentos que não queremos divulgar ou se temos de os divulgar que seja segundo o nosso ponto de vista. Portanto, com maiores ou menores razões, todos nós em algum momento participamos nessa acção. Posso definir a «mentira» como negação duma coisa, material ou imaterial, que pessoa ou instituição considere verdade. Todos temos a noção clara deste acto porque a sua prática nos obriga a pensar, mais ou menos conscientemente, em direcção contrária ao movimento natural da intuição. A nossa intuição flui espontânea e concomitante com a exterioridade empírica do mundo, tal como o peixe navega nas águas que o envolvem. Digo intuição natural porque o humano antes de chegar ao grau de cultura estruturada desta nossa época, assim viveu e assim sobreviveu. Toda a fenomenologia natural, dá-se, espontânea, aí, fora de nós, porém, sem nunca nos ignorar, pelo contrário, dominando todo o nosso fluir. Como negá-la? II. Mesmo dominados por esse exterior dinâmico os humanos possuem a noção da consequência da pratica da acção da «mentira» e, de tal modo, que pela atitude, insinuação e silêncios, é recorrente a tentativa de direccionarem os seus efeitos para determinado fim. Quando essa tentativa se complica, dá-se início a um processo de diversão através da adição à primeira de novas ou semi-mentiras. Penso ser útil ao desenvolvimento deste tema separar a acção da «mentira» por duas áreas: numa, a que chamaria natural, coloco as acções e as respectivas consequências das Verdades empíricas e metafísicas que constituem o padrão genuíno que a Natureza determina sem recurso a qualquer língua falada e, na outra, que designaria humana, deponho as acções correspondentes à negação e substituição da Verdade natural pelas imitações e suas consequências. Como a linguagem, escrita ou falada, é o instrumento por excelência do pensamento, tenha-se em mente que as coisas abstractas ou empíricas, no processo da razão e compreensão, são na generalidade simplesmente designadas por palavras que as representam, logo, «todo o conhecimento se obtém pela comparação de duas ou mais coisas», entre duas ou mais palavras. Há duas formas de comparação: a da “medida” ou grandeza e a da “ordem”. Para comparar duas grandezas ou multiplicidades é exigida uma unidade comum que se aplique, adequadamente, à análise de uma e de outra. Saussure, aponta os signos como instrumentos adequados de análise, por marcarem as identidades e as diferenças, os elementos necessários à taxionomia/ ordem por um lado, e por outro, as semelhanças empíricas das coisas e o repetido da Natureza/ a grandeza. Com Saussure, o signo da linguagem adquire desta maneira uma dupla acção: o conceito – conteúdo ou descrição que significa a coisa - e a forma - invólucro ou som que representa o significante. Portanto, se o signo é pura ligação de um significante a um significado, essa relação só pode ser estabelecida no modo geral da representação. Ambos estão ligados na medida em que um e outro são representados e em que um representa realmente o outro. Foi Saussure quem nos “princípios para uma semiologia geral” define o signo como «ligação a um conceito de imagem» (forma), e recupera a ideia clássica de se pensar a natureza binária do signo. Ou seja, «uma relação de ordem e medida não pode ser restabelecida entre duas coisas a não ser que a sua semelhança permita compará-las». Se a «mentira» não é comparável com as coisas (na ordem e na medida) que inverte, então só pode ser entendida como um movimento entre duas posições ou lugares opostos ou contraditórios, em que uma coisa ao mudar de posição se transmuda no seu oposto. Deixa de ser aquilo que é para ser outra coisa. Logo, a mentira funciona como uma terceira posição, a convenientis, que classifica a relação entre duas coisas: qualquer delas pode ser «verdade» ou «mentira» segundo o interesse em causa. É nesta dupla acção que a ideia de «mentira» como signo sucumbe ao não ser comparável com nenhuma das duas coisas que quer relacionar, ou seja, que quer não relacionar. Ela sobrevive apenas como método sofístico, isto é, atribui aparências de Verdade ou mentira a alguma coisa que não é nem uma nem outra. Este é o justo poder fáctico da «mentira». Desta maneira, a disputa entre «verdade» e «mentira» só ocorre no domínio material e/ ou abstracto do idealizado humano. Porém, a Verdade, tem representação tanto no significado como no significante: tudo o que existe na empíria natural é Verdade (verdadeiro), na medida em que não possui contrário. A Natureza fonte de todas as coisas físicas existentes e até do próprio mundo, não mente. É o padrão que nos diz o que é Verdade ou não no domínio dos objectos de sua criação, objectos que garantem a subsistência de toda a Vida tal como a conhecemos. Esta existencialidade é absoluta, irredutível e insofismável e, também, necessária e suficiente. Em rigor, não dispomos de nenhuma outra medida de aferição. III. Paralelamente à Natureza, a imaginação produz outra «natureza» - aquela área que já referimos e que passaremos a chamar «mundo» entre aspas para o distinguir do mundo natural - a modos como o Minotauro, metade homem e metade touro. A natureza humana seria representada nessa dupla personalidade do Minotauro: por um lado humanista e racional e por outro espontânea e instintiva, sem prejuízo do seu substrato natural. Seja qual for a dimensão ou consequência, a «mentira» é uma acção humana capaz de inverter tudo, quer simplesmente negando o mundo natural quer mesmo afirmando ou negando a imitação por si criada, independentemente de ser ou não verdade. Suaviza-se o conceito «mentira» atribuindo-lhe predicados, como «piedosas» aquelas que se produzem quando queremos evitar magoar alguém; quer pelo comportamento, atitude ou inflexão da voz, «mentimos» para procurar comunicar algo ou acontecimento de modo menos doloroso, como, por exemplo, um falecimento. Mas, na realidade, estamos, simplesmente, a mentir. Então o que é a mentira? Tudo indica que é apenas afirmar o contrário daquilo que é ou se considera ser «verdadeiro». Concretamente, sabe-se o que é mentir porque para haver a «mentira» basta que algo seja «verdade» ou considerado como tal. Porém, pode-se esperar que o desconhecimento da Verdade impeça a produção livre da «mentira»? De modo algum. A «mentira» corre livremente sobre realidades e sobre abstracções. Ela possui a maleabilidade e a penetração fluida das águas, podendo progredir sobre quaisquer outras, até ao infinito. A «mentira» pode cavalgar com sucesso qualquer outra. Se afirmei que a única Verdade é o paradigma da Natureza, uma Verdade irredutível e insofismável, então, não há mesmo nenhum outro tipo de Verdade? Só este? Apesar da peremptoridade e evidência da afirmação sobre a Verdade ser exclusiva da Natureza, que mantenho, tenho de aceitar que há outra coisa também chamada de «verdade», ou seja, aquela que é produzida pelo humano. Um dos mais conhecidos métodos para a encontrar é-nos dado pelas quatro regras cartesianas contra a dúvida: 1) Só aceitar ideias claras e distintas, ou seja, o evidente. 2) Resolver um problema é dividi-lo tantas vezes quantas necessárias até encontrar a solução. 3) Os pensamentos organizam-se do mais simples para o complexo. 4) Numa série verificar todos os conceitos para evitar enganos ou lapsos. Recorde-se que os pensamentos são tratados como objectos abstractos que se podem dividir e reconstruir, porém, enquanto à empíria se refere os objectos já são físicos. Vejamos: A primeira regra é de compreensão clara. A 2ª regra, em que «resolver um problema é dividi-lo tantas vezes quantas necessárias» significa pegar num objecto e dividi-lo sucessivamente em partes cada vez mais pequenas até encontrar a parte indivisível que o compõe, numa ordem do maior para o menor, o que, provavelmente, nos conduz a algo extremamente ínfimo de difícil ordenação taxionómica ou ao nada. A regra 3ª ao determinar que «os pensamentos se organizam do mais simples para o mais complexo», estabelece a possibilidade de percorrer o caminho inverso aconselhado na 2ª, ou seja, a reconstrução do objecto ao seu estado original. A 4ª não carece de interpretação. Como disse, no domínio do pensamento estes movimentos de desconstrução e reconstrução são possíveis, pois são objectos abstractos. Mas, no domínio da empiria esses movimentos são, até hoje, irrealizáveis. Ou Descartes se esqueceu de nos dizer ou não sabia como sair deste imbróglio empírico: se dividimos um objecto até ao seu ponto menor, o que é que aprendemos? A sua composição em partes. Todavia, continuamos sem saber o primordial que permitiu o surgimento do objecto. Consideremos que para construir uma cabana de madeira, cortam-se todas as peças à medida e juntam-se segundo um plano para formar a cabana. Peças essas que em qualquer momento se podem separar e assim desmontar a cabana. Este trabalho de construção, desconstrução e reconstrução pode ser feito tantas vezes quantas se quiser. Porém, o que é a madeira? O que é essa matéria? Como se forma? Pode-se dividi-la até sua mais ínfima parte, mas essa divisão, nunca revelou como a partir do pó final, podemos percorrer o caminho inverso, refazendo-a. Esta tentativa de reconstruir a matéria é a busca do Santo Graal da ciência em todos os tempos. Para Descartes este seria o caminho seguro para vencer a dúvida, ou seja, para encontrar a certeza, a Verdade, o que a encontrar-se daria resposta a todos as interrogações Humanas. Muitos filósofos e cientistas consideram-no o pai da Filosofia moderna, por ter chegado à famosa conclusão: COGITO ERGO SUM, ou seja, o pensamento é a essência do ser e este pode chegar à Verdade. Todavia, mais tarde, Descartes, viu-se obrigado a considerar a existência de Deus, já que sem Ele, o COGITO não era assim tão seguro na descoberta da Verdade. Estas quatro regras têm sido largamente usadas em todas as áreas do conhecimento e particularmente da ciência à procura da chispa primordial constitutiva da matéria. Passados quatro séculos desta e doutras metodologias a Verdade mantém-se inconquistada. IV. A Natureza continua mantendo bem guardados os seus segredos, mas o homem desejoso de desvendá-los, não desiste. É então forçado, inspirando-se na fenomenologia da Natureza, a construir paradigmas matemático geométricos prováveis que desenhem estruturas para uma «verdade» aproximada e desta maneira, com eles validar o seu «mundo». Este grande designio de conhecer e dominar o mundo exige mais e mais instrumentos para elaborar planos, sobre o quais vai exercendo a sua vontade com o sentido de construir a sua «verdade» de um «mundo» melhor do que aquele sem custos oferecido pela Natureza. Alguns humanos estão convencidos que o «seu mundo» será muito melhor, muito mais acolhedor, justo e obediente, por que o pode modificar sempre que lhe convenha e, no limite, destruí-lo e substituí-lo por outro que entretanto lhe pareça ser mais grato. Recorde-se Alexandre, Napoleão, as Guerras Mundiais, os Goulag, e outros. Ou seja, querer e poder manipular no «seu mundo», precisamente, o que a Natureza não consente no dela. Para essa manipulação as ciências preparam especialistas, que se empenham na descoberta do segredo da capacidade da repetição da Natureza, o Santo Graal de todas as ciências. Com esse objectivo surgiram inúmeras organizações científicas e para-científicas, e cada uma, nas suas próprias estruturas matemático científicas estabelece a sua «verdade». Perante tão ampla variedade de instituições de investigação, profissões e saberes que se opõem, tornou-se imperiosa a necessidade de erguer novas organizações, agora reguladoras das primeiras que se especializam na procura e implementação de pontos de concórdia (como por exemplo as comissões de ética) que facilitem a convivência de tantos princípios oximoros. A real Verdade da natureza, do mundo ou do universo, tudo o indica, é uma Verdade metafísica inacessível à compreensão humana. Parece, então, poder afirmar-se com alguma razoabilidade que a Verdade não é um bem disponível para ser conhecido em absoluto. A experiencia do CERN no subsolo francês e Suíço cujo inicio de construção remonta aos anos 80 e os revezes entretanto sofridos indicam a probabilidade do homem estar distante do conhecimento do Uno ou partícula primordial materializante e consubstantiva de todas as matérias vivas existentes. V. Ora, se a verdade não é conhecida, não pode ser contraditada. Se não é contraditável então a «mentira» também não pode existir no contexto do mundo natural. Então, repõe-se a pergunta: o que é «a mentira»? O conceito «mentira» é inerente às estruturas humanas. O político é confrontado pelas mentiras que produz porque o ouvinte pode comparar o que ele afirma com a realidade social conhecida referida. O médico mente quando esconde a realidade do mal que aflige o seu paciente, porque, além dele próprio, a verdade do estado de saúde do doente é conhecida pelos seus colegas. O ancião ou o jovem mentem quando dizem uma idade que não têm, porque alguém sabe não ser essa e eles não a podem provar. Do mesmo modo mente o sujeito que se assume ser aquilo que não é mas de que está convencido. Revisitando as mencionadas áreas em que separei os conceitos «mentira» e verdade: - Na área do mundo natural, mentir é difícil devido ao desconhecimento sobre a verdade da Natureza, para além dos fenómenos superficiais das suas manifestações. Portanto a «mentira» emerge da especulação ou da invenção sobre ela. - Na área paradigmática matemático científica, estruturada – mas não estruturante - os conceitos de «verdade» e de «mentira», vivem em plena acção aniquiladora mutua, ou seja, «isto é assim mas podia não ser», logo, conhecendo-se aquilo que é e aquilo que não é, é tão fácil produzir a «mentira» como a «verdade». É só escolher a posição ou lugar mais convenientis. Esta a contradição das nossas sociedades: a «verdade» e «a mentira» são usadas como instrumentos elocutórios para atingir fins não revelados, mas benéficos ao ganho de um escol. Que posso dizer sobre os delírios ou imaginações em que muitos batalham por uma «verdade» que alguns pensam só «existir» nas suas mentes? Ora, como nem a dúvida nem a perseverança abandonam o homem, só o futuro dirá em que grau essas ideias são delírios. Qual a razão da existência da dúvida? Porque se duvida? René Descartes, «Regras Para a Direcção do Espírito»; René Descartes, «O Discurso do Método», Editora Replicação, Lisboa, pp. 32-50.

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